Violência contra a mulher: uma difícil realidade

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Violência contra a mulher no Brasil, em Santa Catarina e em Lages: aspectos legais, estatísticos e psicológicos
A violência contra a mulher no Brasil é uma realidade persistente, sustentada por raízes culturais e estruturais profundas. Durante décadas, agressões no ambiente doméstico foram tratadas como “problemas privados”, invisibilizadas pelo sistema de justiça e pela sociedade.
Somente com a mobilização do movimento feminista e a repercussão de casos emblemáticos — como o assassinato de Ângela Diniz, em 1976 — o tema começou a ganhar visibilidade pública e a exigir respostas legais concretas.
A violência contra a mulher, em muitos casos, começa no silêncio. Para inúmeras vítimas, a agressão surge de forma sutil: em insultos, humilhações e comportamentos de controle. O controle e a posse são elementos centrais na conduta do agressor, que frequentemente apresenta ciúmes excessivos, insegurança e necessidade de domínio, naturalizando comportamentos abusivos como se fossem demonstrações de amor ou autoridade.
Instrumentos legais de proteção e aplicação da lei
O advogado Patrick Pereira Machado, especialista em Direito Penal e Processo Penal, contribuiu com importantes esclarecimentos sobre o arcabouço jurídico brasileiro de proteção à mulher. Segundo ele, “a legislação é robusta, embora sua efetiva aplicação ainda enfrente desafios”.
Entre os principais instrumentos legais, destacam-se:
• Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006): marco fundamental no combate à violência doméstica e familiar — física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A lei institui medidas protetivas de urgência (afastamento do agressor, proibição de contato, suspensão de porte de arma etc.), bem como a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, assegurando um atendimento especializado e humanizado.
• Aplicação no Judiciário: as medidas protetivas podem ser deferidas de imediato, sem necessidade de ouvir o agressor previamente, e seu descumprimento configura crime autônomo (Art. 24-A).
• Jurisprudência relevante:
• STF (ADI 4424): a ação penal é pública incondicionada, dispensando representação da vítima.
• STJ (Súmula 600): a coabitação não é exigida para configurar violência doméstica.
• STJ (Súmula 589): o princípio da insignificância não se aplica em crimes cometidos no contexto de violência doméstica.
• Código Penal e Leis Complementares:
• Feminicídio (Lei nº 13.104/2015): qualificadora do homicídio, quando o crime é cometido contra a mulher por razões de gênero.
• Lesão corporal específica (Art. 129, §9º e §13º): prevê pena agravada para violência praticada contra familiares e parceiros.
• Violência psicológica (Lei nº 14.188/2021): tipifica condutas de dano emocional, controle e manipulação.
• Perseguição (Stalking) (Lei nº 14.132/2021): criminaliza a perseguição reiterada que ameaça a integridade e a liberdade da vítima.
• Constituição Federal: garante a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre homens e mulheres, atribuindo ao Estado o dever de coibir a violência no âmbito das relações familiares (Art. 226, §8º).
Integração entre o direito penal e o direito civil
Segundo o Dr. Patrick, a Lei Maria da Penha promoveu uma integração inédita entre as esferas penal e cível:
• No campo penal, busca-se a responsabilização do agressor e a prevenção de novas agressões.
• No campo civil, tratam-se as consequências extrapenais: indenizações, guarda de filhos, partilha de bens, divórcio e pensão alimentícia.
Essa articulação visa garantir proteção integral à mulher, permitindo que a condenação criminal sirva como prova em ações cíveis e que as medidas protetivas sejam reforçadas em processos paralelos.
Avanços e desafios
Apesar dos avanços legislativos — em especial com a Lei Maria da Penha (2006) e a Lei do Feminicídio (2015) —, os índices de violência permanecem alarmantes.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2023 o Brasil registrou 1.467 feminicídios, o maior número desde a criação da lei — uma mulher assassinada a cada seis horas. Foram ainda 1,2 milhão de casos de violência contra a mulher, incluindo 778 mil ameaças e 77 mil casos de perseguição.
Em Santa Catarina, o cenário não é diferente. O Estado registrou 62 mil ocorrências de violência contra a mulher em 2024, o que representa 225 casos por dia. Municípios como Riqueza, Penha e Três Barras figuram entre os que têm as maiores taxas de feminicídio. Em Lages, cerca de 21% das chamadas ao número 190 estão relacionadas à violência contra a mulher — colocando o município entre os cinco com mais casos no Estado.
Esses números evidenciam que, embora a legislação brasileira seja uma das mais completas do mundo, sua efetivação ainda enfrenta obstáculos, como a falta de estrutura dos serviços de proteção, a impunidade e a persistência da cultura machista.
A dimensão social e psicológica da violência
A violência contra a mulher não é apenas uma questão criminal: é social, cultural e institucional. Enfrentá-la requer educação, políticas públicas e compromisso coletivo.
Segundo especialistas, a baixa tolerância à frustração é um dos fatores psicológicos que alimentam o comportamento agressivo — o agressor não tolera o “não” e reage com raiva, especialmente contra pessoas próximas.
Essa distorção começa cedo, quando crianças não aprendem limites, empatia e respeito. Pequenos comportamentos negligenciados podem evoluir para atitudes violentas na vida adulta.
Depoimentos e experiências locais
Em Lages, diversas instituições têm se mobilizado. A ACIL (Associação Empresarial de Lages), por meio do NUME – Núcleo da Mulher Empreendedora, tem debatido o tema sob a coordenação de Ticiana Fachin, que afirma:
“O Núcleo da Mulher Empreendedora vê o tema como um desafio e, ao mesmo tempo, uma esperança. A violência doméstica ainda é uma realidade alarmante em nossa cidade. Não falamos de números, mas de vidas, histórias e sonhos interrompidos. Nossa missão é promover apoio, escuta e fortalecimento, ajudando mulheres a reencontrar sua força e autoestima.”
O núcleo tem proposto ações de mentoria, apoio psicológico e capacitação, criando uma rede de solidariedade e acolhimento que inspira mulheres a romper o ciclo da violência.
Vozes que resistem
Histórias reais dão rosto a essa realidade.
Naiara, empresária lageana, sobreviveu a anos de violência física e psicológica. “Percebi que aquilo não era amor. Era medo. Saí de casa apenas com meu filho e a roupa do corpo.” Hoje, ela é apoiada pela Casa Catarina e compartilha sua experiência com outras mulheres, inspirando coragem e autonomia.
Outra mulher, Mariana, de 29 anos, lembra:
“No começo, ele era carinhoso. Depois começou a controlar o que eu vestia, com quem eu falava... até que vieram os empurrões e socos.”
Esses relatos evidenciam o impacto emocional e físico da violência, mas também a possibilidade de reconstrução e superação quando existe rede de apoio.
Reflexão final
A violência contra a mulher não começa com o golpe — começa com o desrespeito, o controle e o silêncio.
Superá-la exige mudança cultural, educação emocional e compromisso social. Cada escola, empresa, instituição pública e grupo comunitário tem papel essencial nessa transformação.
A luta é de todas e todos nós. Somente quando a dignidade feminina for respeitada em todos os espaços, poderemos dizer que vivemos em uma sociedade verdadeiramente civilizada.
