PONTO DE VISTA
A gênese dos Farrapos
Não há um só gaúcho. Existem vários. Desde o contraforte dos Andes, a se desdobrar sobre a imensa Patagônia gelada, ao pampa fértil onde pastava a bagualada xucra, às várzeas lamacentas, feias e tristes de Entre-rios, ao grande Chacro missioneiro. Há gaúchos do Rio Grande, preados nas estâncias, há o serrano mateiro a abrir picadas a facão para as minas gerais do ouro. Há o gaúcho de Corrientes e do de Buenos Aires. O irregular de Urquiza e o soldado de Rosas. Há o gaúcho de Garibaldi e o da cavalaria de Rivera. O gaúcho descalço de Lopes e o de bota floreada de Pedro Campbell. O de Saraiva e do de Artigas. O peão de estância e o tigreiro.
Sequer se conhece a origem da palavra "gaúcho". Vem do canto triste do grilo - o gaúcho dos guaranis, com apôdo "tchê"! - gente geral? Vem do basco "gauche" - o do lado esquerdo do corpo? Ou vem do terneiro sem mãe, desmamado - o "gaúcho"? ou virá de alguma corruptela quíchua que descendeu dos Andes?
Só se sabe que o gaúcho simboliza a civilização do couro. Desgarronava o bovino alçado, mas não comia toda a carne, que apodrecia nas coxilhas à falta de sal. Retirava-lhe apenas o couro e o sebo dos rins. Tornou-se um faquista esgrímio. Carneava, ferrava e matava. Confundia gado com gente. Trocava cavalos por mulheres. Tomava o mate, que vinha das selvas do norte.
Mas tomava-o frio à beira das sangas mortas, em guampa de boi, sorvendo-0 com ossos de pássaro como faziam os índios.
Não conhecia cerca, o aramado, a taipa. Não tinha consciência de divisa, nem da pátria. Falava um misto de espanhol, de guarani, de quíchua. Só depois virou pastor de fazenda, domador, gaudério de corredor, então vestiu sobre o xiripá, o uniforme de bombacha. Mas aí não era "gaúcho" - era peão, era patrão.
Desconhecia a hormônica, cavalgada com a viola andaluz à tiracolo e às vezes batia no tambor andino, mas sempre cantava baixo e devagar - até por que ninguém o escutava nas madrugadas perdidas do pampa.
Era tão bom cavaleiro, montava tão esplendido corcéis crioulos, que arrancavam a terra com seus cascos ponteagudos em forma de meia lua levantina, que deles disse Garibaldi:
-" Daí-me um esquadrão de cavalaria gaúcho e eu conquistarei o mundo...
Ouvia os barulhos misteriosos da terra. Entendia a linguagem do vento sobre as folhas das árvores. Tinha nos pássaros sentinelas avançados. Eram mestiços de índios com brancos, mas nem isso sabiam. Poucos conheceram o mar e muitos achavam que a barra do Uruguai com o Paraguai era a maior imensidão de água possível.
Eram caminhantes. Caminhavam sempre. Não tinham raízes - e esta foi sua maior glória. Chegavam até nós, alias, pela glória e pela esperança.
Hoje não mais existem. São como lágrimas perdidas na chuva, no meio do mar revolto...