EDITORIAL
Reciclar é humano: o peso invisível dos que movem a sustentabilidade

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Nas ruas das cidades, o som das rodas metálicas arrastando o asfalto anuncia um trabalho silencioso e essencial. São os catadores — homens e mulheres que transformam o que a sociedade descarta em sustento, e o que chamamos de “lixo” em matéria-prima para um futuro mais limpo. A reciclagem, tão exaltada em discursos ambientais e campanhas educativas, repousa, em grande parte, sobre os ombros desses trabalhadores invisíveis, que movem a engrenagem da sustentabilidade com esforço, suor e resistência.
Esses profissionais percorrem longas distâncias todos os dias, empurrando carrinhos carregados de papéis, plásticos, vidros e metais. Fazem o que muitas vezes o poder público negligencia: separam, recolhem e destinam corretamente materiais que voltam ao ciclo produtivo. Cada quilo recolhido representa um ato de responsabilidade ambiental, mas também uma dura batalha por sobrevivência. São agentes fundamentais para o equilíbrio ecológico das cidades, ainda que raramente sejam tratados como tal.
Até pouco tempo, os carrinhos de coleta eram puxados por animais — um símbolo da precariedade e da ausência de políticas públicas voltadas à reciclagem e à inclusão social. Hoje, os animais foram substituídos pela tração humana, mas o peso continua enorme. É o peso do corpo cansado, da falta de reconhecimento, da ausência de direitos básicos. É o peso simbólico da invisibilidade, que dobra as costas e cala as vozes de quem, paradoxalmente, carrega sobre si parte da responsabilidade ambiental de todos nós.
Enquanto discursos oficiais celebram metas sustentáveis, planos de economia circular e compromissos globais com o meio ambiente, pouco se fala sobre as condições de trabalho de quem torna essas metas possíveis. A sustentabilidade, tão usada como slogan, muitas vezes ignora o elo humano que a sustenta. É um paradoxo cruel: o mundo quer ser verde, mas fecha os olhos para as mãos calejadas que tornam esse verde possível.
Há, no entanto, experiências que apontam caminhos. Cooperativas e associações de catadores vêm surgindo em diferentes regiões, organizando o trabalho, ampliando rendimentos e conquistando espaço político e social. Quando o poder público apoia essas iniciativas, o resultado é imediato: mais dignidade, mais eficiência e mais impacto ambiental positivo. Mas ainda é pouco diante da magnitude do problema. Sem políticas consistentes, os avanços permanecem isolados — frutos de resistência, e não de prioridade governamental.
O país precisa entender que reciclar não é apenas uma questão técnica ou ambiental. É uma questão social e ética. Não basta incentivar a coleta seletiva se quem coleta continua à margem da cidadania. É preciso garantir equipamentos de proteção, remuneração justa, reconhecimento profissional e acesso a políticas públicas que incluam esses trabalhadores como parte integrante da cadeia da sustentabilidade.
Nas escolas, nas empresas e nas campanhas ambientais, fala-se muito em reduzir, reutilizar e reciclar. Falta acrescentar um quarto verbo: reconhecer. Reconhecer o valor humano por trás do sistema de reciclagem, reconhecer que o verdadeiro desenvolvimento sustentável é aquele que alia progresso ambiental à justiça social.
O futuro que almejamos — mais limpo, mais consciente, mais equilibrado — depende menos de novas tecnologias e mais da capacidade de enxergar e valorizar quem faz o trabalho que ninguém quer fazer. Os catadores não são figuras marginais: são protagonistas de uma transformação silenciosa, feita todos os dias, entre o barulho do trânsito e o peso do carrinho.
Reciclar é, acima de tudo, um ato de consciência. E essa consciência só será completa quando cada lata recolhida, cada pedaço de papel salvo do lixo, vier acompanhado do respeito e da dignidade de quem torna o mundo mais sustentável. Não há futuro ecológico sem justiça social. E não há sustentabilidade verdadeira enquanto o peso da reciclagem continuar sendo apenas humano.
